Publicada desde 15/07/1977.
Na Web desde 12/07/1996.
 
A Janela Internacional traz o que acontece na Europa, pelo redator Fabio Seidl.
Edição de Novembro de 2005
 

A Janela vai à África

 

Tive a oportunidade de passar 10 dias em Angola, filmando. Foi um perrengue e um privilégio.
Perrengue porque quem acompanha esta coluna sabe que eu sou pára-raios de histórias surreais. Imagina na África.
Mas foi um privilégio porque conheci lugares bacanas, ainda não explorados pelo turismo e uma galera muito legal que se identifica com o Brasil. Um país que está começado de novo, com novos valores. E que tem a publicidade num patamar completamente diferente.
Este mês, a Janela Internacional traz os bastidores desta viagem.

PADRINHO, ME DÁ CINCO DÓLARES?

Foi a primeira esmola que me pediram, ainda no aeroporto de Luanda. Acha muito? É o preço de uma garrafa de água.
Fui com o Nuno, RTVC aqui da agência numa padaria: US$ 30. Um jantar considerado normal no Brasil não sai por menos de 50 doletas por cabeça, mesmo valor do salário mínimo lá.
Tudo na capital angolana foi inflacionado em função dos profissionais do petróleo e dos diamantes que vão para lá ganhar muito bem. Por isso muitos preços são dados em dólares.
A moeda local é o Kwanza.

LADRÃO

A equipe foi fazer uma pesquisa de locação do lado dessa escola aí da foto. Foi só estacionar a van e abrir a porta que, do nada, pulou um sujeito lá pra dentro, catou uma câmera digital e deu no pira.
Alguém gritou "Pega ladrão!". Um transeunte (eu sempre quis usar esta palavra, "transeunte", em anúncio nunca consegui...) que estava esperto opor ali passou uma banda no bandido. Pronto. Apareceu o povão para linchar o muquirana.
Gente de todas as idades com pedras, paus e punhos. Um programa para toda a família. A polícia apareceu para colocar ordem na quizumba. E a ordem era: primeiro os puliça, depois a rapeize. Os "ômi" furaram a fila dos tabefes, desceram a mamona e levaram o lafranhudo no camburão. Me senti em casa. O diretor dos comerciais, um sueco, está impressionado até hoje.

LADRÃO II

Dia seguinte, fomos filmar no mesmo lugar e, inacreditável, o ladrão voltou!
"Quero falar com o pessoal da filmagem!" gritava o Mister Hematoma. Deram voz ao homem, ou ao que restou dele: "Eu vim pra pedir desculpas! Não sei o que deu em mim para fazer aquilo! Me perdoem..."
E como se já não fosse surreal o bastante ter ali um ladrão arrependido: "Apanhei, mereci e aprendi uma lição...mas, o que me deixou mais chateado é que no meio da confusão...ROUBARAM O MEU RELÓGIO". Genial.

TEJE PRESO

As câmeras digitais deviam estar com vudu. Um diretor de arte saiu numa pick-up para tirar umas fotos e foi abordado por dois agentes da autoridade.
- "O senhor está preso!"
- "Cuma?"
- "É proibido fotografar policiais! O senhor fotografou aquelas pessoas e nós estávamos no meio."
- "Me desculpe, eu não vi, não sabia..."
- "Passe o filme e os documentos..."
- "Mas isto aqui é uma digital. Olha, eu vou apagar a foto..."
(Tomaram a câmera dele e exigiram o passaporte)
- "O senhor vai é pra a delegacia, vamos andando."
- "Andando? Mas eu estou de carro..."
- "Bem, neste caso, o senhor nos segue no carro, nós vamos a pé."
- "Mas...eu posso dar uma carona..."
- "Não...não podemos andar no carro dos presos..."
E lá foi ele, de carro, atrás dos dois homens da lei, a pé. Depois de quase meia hora de trajeto, foi abordado por alguém com ar de chefia. Ofereceu "bons argumentos" e foi liberado.

GASOSA

Subornar alguém ou dar propina para os angolanos não é "dar uma cervejinha", como no Brasil, mas é parecido. Chama- se "dar uma gasosa". Gasosa é como se chamam os refrigerantes.

QUESTÃO DE SEGURANÇA

Estávamos filmando nesta fortaleza, uma área militar, tínhamos autorização. Mesmo assim chegou um caminhão com vários soldados: "Pára tudo. Questão de segurança! Não pode mostrar a Casa do Presidente nem o Mausoléu!"
A Casa ficava a quilômetros dali. Talvez desse para ver um muro, de longe. O Mausoléu do Agostinho Neto é um marco de Luanda, um obelisco gigante no meio da cidade e maior do que qualquer prédio por lá.
A partir daí, o que se passava com a gente era digna de um outro filme: o diretor de fotografia fazia o quadro, o diretor olhava, um soldado aprovava e dava a palavra final: "Roda...".

ALAMBAMENTO

De manhã cedo, todo mundo chegando no set. Um dos motoristas, o Maninho, um angolano, está muito triste.
- "O que é que houve?"
- "Ê pá, recebi uma carta de alambamento."
(Coitado, vai ser despejado de casa, pensei...)
- "Ih, alambamento, é?"
- "Sabe o que é?"
- "Não..."
E o Maninho mostrou a carta pra galera. Dizia mais ou menos assim:
"O Sr. Maninho, por ter engravidado a minha filha deve o seguinte alambamento:
- 12 caixas de whisky.
- 20 caixas de cerveja.
- 20 caixas de sangria e 20 de refrigerante.
- 5 Kg de carne de porco
- 5 galinhas
- Um sapato preto número 39.
- Um terno bege e uma gravata vermelha.
- 300 dólares em dinheiro...
Eram dezenas de coisas. Presentinhos para o pai, para os primos, para o avô. Nada para a mulher, nem para o bebê.
- "É uma tradição na África. Se for sua namorada e você for casar, eles usam isso para uma festa, se não for, ficam com tudo." Explicou o Seu Cardoso, outro motorista, experiente em alambamentos. Seu Cardoso tem seis filhos, um deles fora do casamento e continua casado com a mesma mulher (também é comum na África, disse ele).
- " Seu Cardoso, e se o cara não pagar esse Alambamento?"
- "Olha, nunca conheci alguém que não tenha pago."
- "Tá, posso imaginar o porquê..."

O ARTISTA

Fui apresentado a um dos maiores escultores africanos, o Etona, que tem um trabalho bem legal. Conversamos sobre arte, um papinho cabeça.
- "Parabéns pelo trabalho do senhor. A arte africana parece ter muito em comum com o Brasil."
- "Obrigado. O Brasil é que é cheio de artistas. Eu viajo muito e sempre encontro vários. Agora mesmo, no Japão, conheci um que vive por lá."
- "É os brasileiros estão em toda a parte..."
- "Ele gostava do estilo do Didi, mas o próprio Didi esteve com ele uma vez e disse que o trabalho dele era uma imitação mal feita."
- "O senhor estava falando do Di... Cavalcanti?"
- "Que Cavalcante? Di...di! Didi Mocó, dos Trapalhões!!"
Por um momento, meus neurônios entraram em "caflito".

ROQUE SANTEIRO

Nem só de Didi Mocó vive a influência brasileira junto. Os angolanos escutam muita música brasileira e, claro, vêem as novelas. Estão no ar por lá Suave Veneno e Gabriela. Fora as que eles pegam nas parabólicas.
A de maior sucesso, Roque Santeiro acabou por batizar o maior mercado ao céu aberto da África. São milhares de quilômetros de camelôs onde se compra de tudo: de mulheres a metralhadoras. Tentei ir lá, mas disseram que não era lugar para "pula" (branco) ir sozinho.

O DREADLOCK

O figura aí da foto chama-se N'guxi dos Santos, é diretor de cinema, foi um dos nossos produtores e virou um grande camarada. A vida dele dava um filme. E deu. Já fizeram até um documentário sobre o homem.
Na adolescência teve que servir o exército e como levava jeito para comunicação, virou documentarista militar. Só que, a uma certa altura, ao invés de mostrar só o que os militares queriam ver, começou a usar os filmes para denunciar as atrocidades da guerra.
Mas "sumiu" muita coisa que ele filmou. Dizem que parte disso foi parar no Brasil. O que ficou com ele foi transformado em filmes como "O Homem Que Foi Enterrado Vivo" e rodaram por mostras de cinema pelo mundo.
Depois de sair da frente de batalha, N'guxi virou uma espécie de VJ. Produziu o 1o. programa musical da TV local, foi para o rádio e organizou festivais pelo país. Hoje, aos 40 anos e com status de celebridade (Luanda inteira fala com ele) toca a sua própria produtora, batizada de... Dread Locks!

A CANDONGA

Angola tem uma das maiores produções de petróleo da África. Mesmo assim, as filas do combustível duram horas, aparentemente pela escassez de postos.
No único dia livre que tive por lá, fui à Ilha do Mussulo, bem bacana, por sinal. No caminho, Seu Cardoso, o motorista, diz que precisa abastecer. Paramos no meio do nada, onde tinha um posto com uma fila monstruosa.
"Vou comprar na candonga", avisou Seu Cardoso.
Candonga é como se chama tudo que é comércio informal. No caso do combustível, a candonga é um monte de malucos que vendem combustível em tonéis de plástico ao lado do posto, para quem não tem saco pra fila.
Volta o Seu Cardoso e um "Petrocamelô". Primeiro eles cortam com a boca uma garrafa imunda que estava na estrada e improvisam um funil. Depois só vejo o Seu Cardoso com as mãos na cabeça, desesperado.
- "O que houve, Seu Cardoso?"
- "O que é isto que estão colocando no meu carro?"
- "Não é gasolina?" Eu pergunto.
- "É..." Diz o Petrocamelô...
- "Mas o meu carro é a Diesel!!!"
Que beleza, pensei, no único dia que eu tenho para ir à praia, vou passar nesta pseudo- estrada pedindo carona. Mas o Seu Cardoso tinha sido mecânico do exército durante 10 anos. Com certeza sabia como resolver isso.
- "E o que é que a gente faz agora, Seu Cardoso?"
- "Pois é, o que é que a gente faz agora?"
O Seu Cardoso não sabia. Mas já que me perguntou...
- "Mete o Diesel por cima e vambora daqui."
Volta o Cardosão com o Diesel, 40 litros. Começa a colocar no carro.
- "Seu Cardoso, o senhor pegou a estrada totalmente sem combustível?"
- "Não...ainda tenho meio tanque."
- "Então a gente não precisava abastecer, Seu Cardoso..."
- "É pra garantir..."
- "Seu Cardoso, quanto cabe no tanque dessa pick- up?"
- "60 litros..."
- "Mas se cabem 60 e já temos 30, porque estamos colocando 40 litros?"
- "É pra garantir, é pra garantir..."
Foi só falar isso para terminar todo mundo cagado com o óleo Diesel que transbordou do tanque.

PUBLICITÁRIOS EM ANGOLA

Cláudio "Lango"Aos poucos, os publicitários brasileiros estão chegando em Angola. A agência baiana Link, por exemplo, já tem um escritório por lá. Uma das maiores produtoras de Luanda, a Mayanga, também tem participação brasileira.
Troquei uma idéia com dois criativos que estão lá e conhecem bem o Brasil.
Cláudio Rafael (foto à direita) é angolano, diretor de arte e de criação e trabalhou muitos anos na RioKa onde era mais conhecido como "Lango". Já o William Gama (foto mais abaixo) é brasileiro e diretor de arte. Trabalhou em São Paulo na Y&R, DPZ e Full Jazz.
Hoje estão na Executive Center, agência do grupo Euro RSCG em Angola e uma das maiores do país, com contas como a Angola Telecom, Sonangol (a "Petrobras" de Angola), Renault, Correios, Banco BFA, entre outras.
FS: William, o que te levou a aceitar a proposta para trabalhar em Angola? Já tem muitos brasileiros no mercado angolano?
WG: Foi insanidade! Brincadeira... foi a aventura, a curiosidade e saber que dificilmente aconteceria novamente. E claro, uma maneira de encurtar o caminho para outros objetivos na vida. Já tem alguns brasileiros aqui. Os angolanos adoram o Brasil, o vêem como um irmão que cresceu e se deu bem na vida.
FS: Cláudio, você que é angolano, como está o país hoje? Notei muita esperança e bom humor nas pessoas.
CR: O que se vive hoje não se compara a 5 anos atrás, e esta esperança é justamente a crença que daqui a 5 anos será ainda melhor. O bom humor, acho que foi uma dádiva para suportar tantos anos de guerra civil. Nisto Angola lembra o Brasil. Faça chuva ou faça sol, há sempre festa.
FS: Quais os pontos positivos e os negativos de Angola?
WG: A primeira impressão é de que aqui só tem pontos negativos. O lixo, a desorganização, o trânsito, o racismo se você for branco. Mas com o tempo você vê que não é bem assim, tem a parte boa, as pessoas... Os africanos estão sempre sorrindo, um povo que esteve em guerra por 44 anos e saiu disso só há 3. É uma experiência de vida espetacular, há muito para aprender aqui.
William GamaCR: O positivo é que quase tudo por aqui ainda está por fazer. De negativo, a sociedade, que começa a dar os primeiros passos de uma "nova era" mais ainda está cheia de tabus do passado e de regras incompreensíveis.
FS: E como está o mercado?
WG: Está crescendo muito rápido. O dia-a-dia é estimulante e o sentimento de contribuir com o desenvolvimento é muito bom. A publicidade está sempre presente na educação do povo, e aqui muito mais do que em outros países.
CR: O crescimento é espetacular. No volume e na mentalidade de quem compra a propaganda. Há dois anos, quando cheguei, era difícil pôr campanhas grandes na rua. Hoje não. A qualidade do cliente cresceu. Isto mostra a credibilidade que o mercado vem ganhando.
FS: Quais as maiores diferenças entre trabalhar em Angola e no Brasil ou em Portugal, onde vocês também passaram?
WG: A publicidade aqui está começando, ainda são poucas as marcas presentes na comunicação. É preciso ser paciente e estar disponível para outra realidade. Estrela aqui não se safa.
CR: As diferenças estão em tudo. Mas sempre estive consciente e adaptado a elas. Mas nota-se que em pouco tempo Angola terá um mercado tão competitivo como os outros, por ser um país bastante dado às mudanças.

Cais de QuatroAS MARCAS DO MÊS

Sim, Angola também tem as suas marcas com nomes engraçados para nós, brazucas. Este mês a coluna vai atribuir um empate técnico.
Cerveja EkaE os vencedores são o restaurante "Cais de Quatro" (que, dizem, é de um brasileiro) e a Cerveja "Eka". Sem maiores comentários.

FALANDO EM BEBIDA

Johnny Walker na ÁfricaEu bebi demais, só penso em propaganda ou este aí era mesmo o Johnny Walker, andando por Luanda?

Fábio Seidl é redator da McCann-Erickson Portugal.- Novembro/2005)