A Janela vai
à África
Tive
a oportunidade de passar 10 dias em Angola, filmando. Foi um perrengue
e um privilégio.
Perrengue porque quem acompanha esta coluna sabe que eu sou pára-raios
de histórias surreais. Imagina na África.
Mas foi um privilégio porque conheci lugares bacanas, ainda
não explorados pelo turismo e uma galera muito legal que
se identifica com o Brasil. Um país que está começado
de novo, com novos valores. E que tem a publicidade num patamar
completamente diferente.
Este mês, a Janela Internacional traz os bastidores desta
viagem.
PADRINHO, ME DÁ CINCO DÓLARES?
Foi
a primeira esmola que me pediram, ainda no aeroporto de Luanda.
Acha muito? É o preço de uma garrafa de água.
Fui com o Nuno, RTVC aqui da agência numa padaria: US$ 30.
Um jantar considerado normal no Brasil não sai por menos
de 50 doletas por cabeça, mesmo valor do salário mínimo
lá.
Tudo na capital angolana foi inflacionado em função
dos profissionais do petróleo e dos diamantes que vão
para lá ganhar muito bem. Por isso muitos preços são
dados em dólares.
A moeda local é o Kwanza.
LADRÃO
A
equipe foi fazer uma pesquisa de locação do lado dessa
escola aí da foto. Foi só estacionar a van e abrir
a porta que, do nada, pulou um sujeito lá pra dentro, catou
uma câmera digital e deu no pira.
Alguém gritou "Pega ladrão!". Um transeunte
(eu sempre quis usar esta palavra, "transeunte", em anúncio
nunca consegui...) que estava esperto opor ali passou uma banda
no bandido. Pronto. Apareceu o povão para linchar o muquirana.
Gente de todas as idades com pedras, paus e punhos. Um programa
para toda a família. A polícia apareceu para colocar
ordem na quizumba. E a ordem era: primeiro os puliça, depois
a rapeize. Os "ômi" furaram a fila dos tabefes,
desceram a mamona e levaram o lafranhudo no camburão. Me
senti em casa. O diretor dos comerciais, um sueco, está impressionado
até hoje.
LADRÃO II
Dia seguinte, fomos filmar no mesmo lugar e, inacreditável,
o ladrão voltou!
"Quero falar com o pessoal da filmagem!" gritava o Mister
Hematoma. Deram voz ao homem, ou ao que restou dele: "Eu vim
pra pedir desculpas! Não sei o que deu em mim para fazer
aquilo! Me perdoem..."
E como se já não fosse surreal o bastante ter ali
um ladrão arrependido: "Apanhei, mereci e aprendi uma
lição...mas, o que me deixou mais chateado é
que no meio da confusão...ROUBARAM O MEU RELÓGIO".
Genial.
TEJE PRESO
As câmeras digitais deviam estar com vudu. Um diretor de
arte saiu numa pick-up para tirar umas fotos e foi abordado por
dois agentes da autoridade.
- "O senhor está preso!"
- "Cuma?"
- "É proibido fotografar policiais! O senhor fotografou
aquelas pessoas e nós estávamos no meio."
- "Me desculpe, eu não vi, não sabia..."
- "Passe o filme e os documentos..."
- "Mas isto aqui é uma digital. Olha, eu vou apagar
a foto..."
(Tomaram a câmera dele e exigiram o passaporte)
- "O senhor vai é pra a delegacia, vamos andando."
- "Andando? Mas eu estou de carro..."
- "Bem, neste caso, o senhor nos segue no carro, nós
vamos a pé."
- "Mas...eu posso dar uma carona..."
- "Não...não podemos andar no carro dos presos..."
E lá foi ele, de carro, atrás dos dois homens da lei,
a pé. Depois de quase meia hora de trajeto, foi abordado
por alguém com ar de chefia. Ofereceu "bons argumentos"
e foi liberado.
GASOSA
Subornar alguém ou dar propina para os angolanos não
é "dar uma cervejinha", como no Brasil, mas é
parecido. Chama- se "dar uma gasosa". Gasosa é
como se chamam os refrigerantes.
QUESTÃO DE SEGURANÇA
Estávamos
filmando nesta fortaleza, uma área militar, tínhamos
autorização. Mesmo assim chegou um caminhão
com vários soldados: "Pára tudo. Questão
de segurança! Não pode mostrar a Casa do Presidente
nem o Mausoléu!"
A Casa ficava a quilômetros dali. Talvez desse para ver um
muro, de longe. O Mausoléu do Agostinho Neto é um
marco de Luanda, um obelisco gigante no meio da cidade e maior do
que qualquer prédio por lá.
A partir daí, o que se passava com a gente era digna de um
outro filme: o diretor de fotografia fazia o quadro, o diretor olhava,
um soldado aprovava e dava a palavra final: "Roda...".
ALAMBAMENTO
De manhã cedo, todo mundo chegando no set. Um dos motoristas,
o Maninho, um angolano, está muito triste.
- "O que é que houve?"
- "Ê pá, recebi uma carta de alambamento."
(Coitado, vai ser despejado de casa, pensei...)
- "Ih, alambamento, é?"
- "Sabe o que é?"
- "Não..."
E o Maninho mostrou a carta pra galera. Dizia mais ou menos assim:
"O Sr. Maninho, por ter engravidado a minha filha deve o seguinte
alambamento:
- 12 caixas de whisky.
- 20 caixas de cerveja.
- 20 caixas de sangria e 20 de refrigerante.
- 5 Kg de carne de porco
- 5 galinhas
- Um sapato preto número 39.
- Um terno bege e uma gravata vermelha.
- 300 dólares em dinheiro...
Eram dezenas de coisas. Presentinhos para o pai, para os primos,
para o avô. Nada para a mulher, nem para o bebê.
- "É uma tradição na África. Se
for sua namorada e você for casar, eles usam isso para uma
festa, se não for, ficam com tudo." Explicou o Seu Cardoso,
outro motorista, experiente em alambamentos. Seu Cardoso tem seis
filhos, um deles fora do casamento e continua casado com a mesma
mulher (também é comum na África, disse ele).
- " Seu Cardoso, e se o cara não pagar esse Alambamento?"
- "Olha, nunca conheci alguém que não tenha pago."
- "Tá, posso imaginar o porquê..."
O
ARTISTA
Fui apresentado a um dos maiores escultores africanos, o Etona,
que tem um trabalho bem legal. Conversamos sobre arte, um papinho
cabeça.
- "Parabéns pelo trabalho do senhor. A arte africana
parece ter muito em comum com o Brasil."
- "Obrigado. O Brasil é que é cheio de artistas.
Eu viajo muito e sempre encontro vários. Agora mesmo, no
Japão, conheci um que vive por lá."
- "É os brasileiros estão em toda a parte..."
- "Ele gostava do estilo do Didi, mas o próprio Didi
esteve com ele uma vez e disse que o trabalho dele era uma imitação
mal feita."
- "O senhor estava falando do Di... Cavalcanti?"
- "Que Cavalcante? Di...di! Didi Mocó, dos Trapalhões!!"
Por um momento, meus neurônios entraram em "caflito".
ROQUE
SANTEIRO
Nem só de Didi Mocó vive a influência brasileira
junto. Os angolanos escutam muita música brasileira e, claro,
vêem as novelas. Estão no ar por lá Suave Veneno
e Gabriela. Fora as que eles pegam nas parabólicas.
A de maior sucesso, Roque Santeiro acabou por batizar o maior mercado
ao céu aberto da África. São milhares de quilômetros
de camelôs onde se compra de tudo: de mulheres a metralhadoras.
Tentei ir lá, mas disseram que não era lugar para
"pula" (branco) ir sozinho.
O DREADLOCK
O
figura aí da foto chama-se N'guxi dos Santos, é diretor
de cinema, foi um dos nossos produtores e virou um grande camarada.
A vida dele dava um filme. E deu. Já fizeram até um
documentário sobre o homem.
Na adolescência teve que servir o exército e como levava
jeito para comunicação, virou documentarista militar.
Só que, a uma certa altura, ao invés de mostrar só
o que os militares queriam ver, começou a usar os filmes
para denunciar as atrocidades da guerra.
Mas "sumiu" muita coisa que ele filmou. Dizem que parte
disso foi parar no Brasil. O que ficou com ele foi transformado
em filmes como "O Homem Que Foi Enterrado Vivo" e rodaram
por mostras de cinema pelo mundo.
Depois de sair da frente de batalha, N'guxi virou uma espécie
de VJ. Produziu o 1o. programa musical da TV local, foi para o rádio
e organizou festivais pelo país. Hoje, aos 40 anos e com
status de celebridade (Luanda inteira fala com ele) toca a sua própria
produtora, batizada de... Dread Locks!
A CANDONGA
Angola
tem uma das maiores produções de petróleo da
África. Mesmo assim, as filas do combustível duram
horas, aparentemente pela escassez de postos.
No único dia livre que tive por lá, fui à Ilha
do Mussulo, bem bacana, por sinal. No caminho, Seu Cardoso, o motorista,
diz que precisa abastecer. Paramos no meio do nada, onde tinha um
posto com uma fila monstruosa.
"Vou comprar na candonga", avisou Seu Cardoso.
Candonga é como se chama tudo que é comércio
informal. No caso do combustível, a candonga é um
monte de malucos que vendem combustível em tonéis
de plástico ao lado do posto, para quem não tem saco
pra fila.
Volta o Seu Cardoso e um "Petrocamelô". Primeiro
eles cortam com a boca uma garrafa imunda que estava na estrada
e improvisam um funil. Depois só vejo o Seu Cardoso com as
mãos na cabeça, desesperado.
- "O que houve, Seu Cardoso?"
- "O que é isto que estão colocando no meu carro?"
- "Não é gasolina?" Eu pergunto.
- "É..." Diz o Petrocamelô...
- "Mas o meu carro é a Diesel!!!"
Que beleza, pensei, no único dia que eu tenho para ir à
praia, vou passar nesta pseudo- estrada pedindo carona. Mas o Seu
Cardoso tinha sido mecânico do exército durante 10
anos. Com certeza sabia como resolver isso.
- "E o que é que a gente faz agora, Seu Cardoso?"
- "Pois é, o que é que a gente faz agora?"
O
Seu Cardoso não sabia. Mas já que me perguntou...
- "Mete o Diesel por cima e vambora daqui."
Volta o Cardosão com o Diesel, 40 litros. Começa a
colocar no carro.
- "Seu Cardoso, o senhor pegou a estrada totalmente sem combustível?"
- "Não...ainda tenho meio tanque."
- "Então a gente não precisava abastecer, Seu
Cardoso..."
- "É pra garantir..."
- "Seu Cardoso, quanto cabe no tanque dessa pick- up?"
- "60 litros..."
- "Mas se cabem 60 e já temos 30, porque estamos colocando
40 litros?"
- "É pra garantir, é pra garantir..."
Foi só falar isso para terminar todo mundo cagado com o óleo
Diesel que transbordou do tanque.
PUBLICITÁRIOS EM ANGOLA
Aos
poucos, os publicitários brasileiros estão chegando
em Angola. A agência baiana Link, por exemplo, já tem
um escritório por lá. Uma das maiores produtoras de
Luanda, a Mayanga, também tem participação
brasileira.
Troquei uma idéia com dois criativos que estão lá
e conhecem bem o Brasil.
Cláudio Rafael (foto à direita) é angolano,
diretor de arte e de criação e trabalhou muitos anos
na RioKa onde era mais conhecido como "Lango". Já
o William Gama (foto mais abaixo) é brasileiro e diretor
de arte. Trabalhou em São Paulo na Y&R, DPZ e Full Jazz.
Hoje estão na Executive Center, agência do grupo Euro
RSCG em Angola e uma das maiores do país, com contas como
a Angola Telecom, Sonangol (a "Petrobras" de Angola),
Renault, Correios, Banco BFA, entre outras.
FS: William, o que te levou a aceitar a proposta para trabalhar
em Angola? Já tem muitos brasileiros no mercado angolano?
WG: Foi insanidade! Brincadeira... foi a aventura, a curiosidade
e saber que dificilmente aconteceria novamente. E claro, uma maneira
de encurtar o caminho para outros objetivos na vida. Já tem
alguns brasileiros aqui. Os angolanos adoram o Brasil, o vêem
como um irmão que cresceu e se deu bem na vida.
FS: Cláudio, você que é angolano, como
está o país hoje? Notei muita esperança e bom
humor nas pessoas.
CR: O que se vive hoje não se compara a 5 anos atrás,
e esta esperança é justamente a crença que
daqui a 5 anos será ainda melhor. O bom humor, acho que foi
uma dádiva para suportar tantos anos de guerra civil. Nisto
Angola lembra o Brasil. Faça chuva ou faça sol, há
sempre festa.
FS: Quais os pontos positivos e os negativos de Angola?
WG: A primeira impressão é de que aqui só
tem pontos negativos. O lixo, a desorganização, o
trânsito, o racismo se você for branco. Mas com o tempo
você vê que não é bem assim, tem a parte
boa, as pessoas... Os africanos estão sempre sorrindo, um
povo que esteve em guerra por 44 anos e saiu disso só há
3. É uma experiência de vida espetacular, há
muito para aprender aqui.
CR:
O positivo é que quase tudo por aqui ainda está
por fazer. De negativo, a sociedade, que começa a dar os
primeiros passos de uma "nova era" mais ainda está
cheia de tabus do passado e de regras incompreensíveis.
FS: E como está o mercado?
WG: Está crescendo muito rápido. O dia-a-dia
é estimulante e o sentimento de contribuir com o desenvolvimento
é muito bom. A publicidade está sempre presente na
educação do povo, e aqui muito mais do que em outros
países.
CR: O crescimento é espetacular. No volume e na mentalidade
de quem compra a propaganda. Há dois anos, quando cheguei,
era difícil pôr campanhas grandes na rua. Hoje não.
A qualidade do cliente cresceu. Isto mostra a credibilidade que
o mercado vem ganhando.
FS: Quais as maiores diferenças entre trabalhar em
Angola e no Brasil ou em Portugal, onde vocês também
passaram?
WG: A publicidade aqui está começando, ainda
são poucas as marcas presentes na comunicação.
É preciso ser paciente e estar disponível para outra
realidade. Estrela aqui não se safa.
CR: As diferenças estão em tudo. Mas sempre
estive consciente e adaptado a elas. Mas nota-se que em pouco tempo
Angola terá um mercado tão competitivo como os outros,
por ser um país bastante dado às mudanças.
AS
MARCAS DO MÊS
Sim, Angola também tem as suas marcas com nomes engraçados
para nós, brazucas. Este mês a coluna vai atribuir
um empate técnico.
E
os vencedores são o restaurante "Cais de Quatro"
(que, dizem, é de um brasileiro) e a Cerveja "Eka".
Sem maiores comentários.
FALANDO EM BEBIDA
Eu
bebi demais, só penso em propaganda ou este aí era
mesmo o Johnny Walker, andando por Luanda?
Fábio
Seidl é redator da McCann-Erickson Portugal.-
Novembro/2005)
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